Tradições Vivas: As Festas e Rituais dos Quilombos Sertanejos

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Em cada canto do sertão, onde a poeira do chão seco encontra as sombras frondosas de um juazeiro, as tradições dos quilombos resistem, vibram e dançam. Elas não apenas sobrevivem — florescem como memória viva de um povo que enfrentou o silêncio da história oficial com música, fé e alegria. As festas e rituais dos quilombos sertanejos não são apenas celebrações: são testemunhos de ancestralidade, espiritualidade e coletividade.

Festas Religiosas e Profanas: Entre a Fé e a Festa

No coração dos quilombos do sertão nordestino, a fé caminha de mãos dadas com a festa. Os calendários comunitários são marcados por datas religiosas, mas também por celebrações que misturam o sagrado e o profano de forma harmônica. Entre as festas mais simbólicas estão:

  • Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos: Uma das mais tradicionais, onde se misturam ladainhas, procissões e a forte presença do reinado negro. Grupos com coroas e mantos coloridos saem em cortejos que homenageiam os santos católicos com ritmo africano.
  • Festa de São Benedito: Muito comum em comunidades quilombolas de Pernambuco e Alagoas, essa celebração sincretiza o catolicismo com elementos das religiões de matriz africana.
  • Festa do Tambor ou do Rosário: Em muitas comunidades, após a missa ou reza, inicia-se o momento profano: tambores ecoam, corpos dançam, o terreiro se enche de vida. É o tempo da liberdade, do riso, da celebração do simples prazer de estar junto.

Essas festas não têm palcos. O chão batido é a base onde o povo dança. Não têm camarotes: todos estão no mesmo plano — do mais velho ao mais novo. E não seguem cronogramas fixos: seguem o ritmo do coração da comunidade.

Danças, Toques e Músicas: Ritmos de Ancestralidade

Quando os tambores começam a soar, não é apenas música que nasce: é a memória coletiva que se manifesta. A musicalidade quilombola no sertão é uma herança que pulsa no corpo, na palma da mão, nos pés que batem o chão em compasso com os toques ancestrais.

  • O Coco de Roda: Com raízes africanas e forte presença nas comunidades quilombolas de Alagoas e Pernambuco, o coco é dança, poesia e resistência. A roda se forma, o cantador puxa os versos e a comunidade responde com palmas, dança e improvisos. Ali se celebra a vida e se exercita a liberdade de expressão.
  • O Samba de Roda Sertanejo: Menos conhecido que o baiano, o samba de roda sertanejo possui variações locais, muitas vezes acompanhado de instrumentos feitos à mão, como a rabeca, o pandeiro e o ganzá. As letras falam da lida, do amor, da fé e das perdas.
  • Cantigas de Louvor e Trabalho: Muitos quilombos preservam canções de plantio, de colheita e de louvor aos ancestrais. Essas músicas são entoadas por gerações e servem como marca do tempo e elo entre o passado e o presente.

A música é também o registro oral mais potente dessas comunidades. Cada melodia é uma narrativa, cada ritmo, um código de pertencimento.

Símbolos e Rituais: O Invisível Tornado Visível

Na cultura quilombola sertaneja, o ritual é mais que cerimônia: é ponte entre mundos. Os símbolos que acompanham as celebrações carregam significados profundos:

  • A Coroa e o Manto: Nas festas do Rosário, os reis e rainhas do Congo usam coroas enfeitadas e mantos bordados que simbolizam a realeza negra, resgatando a dignidade ancestral africana.
  • O Toque do Tambor: Não é apenas percussão. Cada batida tem intenção, ritmo e função. Há toques para chamar os ancestrais, para iniciar a dança ou para saudar os orixás (nas comunidades onde o sincretismo afro-religioso está presente).
  • As Rezadeiras e Benzedeiras: Com seus ramos de arruda, palavras sussurradas e cruzes feitas com os dedos, elas conduzem rituais de cura que misturam rezas católicas com saberes afro-indígenas. Seus gestos são um idioma próprio, sagrado e feminino.
  • As Fogueiras e os Mastros: Nas festas de São João e São Sebastião, erguer um mastro ou acender uma fogueira não é só tradição. É um rito que renova a fé, atrai proteção e convoca a comunidade à união.

Esses símbolos não estão nos museus. Estão vivos, sendo usados, dançados, rezados — renovados a cada ciclo de festa.

Relatos reais de Celebrações:

Festa de São Benedito no Quilombo do Saco do Curtume (BA)

A festa acontece anualmente em janeiro, com duração de três dias. São Benedito, santo negro católico, é reverenciado como protetor das comunidades negras. No primeiro dia, ocorre o levantamento do mastro, acompanhado por rezas, tambores e cantos de louvação.

As mulheres da comunidade, lideradas pela anciã Dona Etelvina, de 84 anos, enfeitam o andor com flores do cerrado e pano bordado com símbolos afro-brasileiros. O toque dos tambores de maculelê anuncia a procissão.

Entrevista com Dona Etelvina:

“Essa festa é o que temos de mais nosso. Quando a gente dança e canta pra São Benedito, é como se ele estivesse ali, com a gente, nos protegendo desde a época da fuga dos nossos avôs do cativeiro.”

À noite, a parte profana toma conta: roda de samba de roda, batuque de tambor de crioula e comidas típicas, como mugunzá salgado e carne de bode com cuscuz. O evento é um reencontro entre gerações, uma reafirmação de fé e de negritude.

Festa de Nossa Senhora do Rosário no Quilombo Conceição das Crioulas (PE)

Realizada em outubro, essa festa reúne várias comunidades do entorno. Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é celebrada com força por ter sido historicamente associada aos escravizados e libertos.

O ponto alto é o Encontro dos Ternos, grupos de maracatu rural e caboclinhos que se apresentam com indumentárias coloridas, coroas e bastões. A dança é ritualística, coreografada como se fosse um combate simbólico entre o bem e o mal.

Depoimento de Mestre Zeca, 76 anos:

“O maracatu da gente é coisa de encantado. Cada passo é uma reza, cada tambor que bate chama um espírito de luz. É dança, mas é proteção.”

A imagem da santa é levada em cortejo com cantos em iorubá e português arcaico. Ao final, há um almoço comunitário com galinha caipira, arroz de leite e xerém. A festa fortalece o elo entre fé católica e matriz africana.

A Chegança do Quilombo Barra dos Negros (BA)

Celebrada em novembro, durante o mês da Consciência Negra, a Chegança é um auto dramático marítimo, onde os quilombolas encenam batalhas entre cristãos e mouros. É uma tradição herdada dos tempos coloniais e adaptada pelos quilombolas para ressignificar luta e resistência.

Vestidos de marinheiros, com espadas de madeira e fardamento azul e branco, os homens marcham e cantam, alternando louvores a santos com cantigas de guerra. Mulheres entoam ladainhas enquanto conduzem crianças com pequenas réplicas de embarcações.

Relato de Joana Flor, professora local:

“A Chegança nos ensina que o povo negro sabe dramatizar sua dor e transformá-la em beleza. É uma memória viva da resistência que nos trouxe até aqui.”

Durante a noite, há rodas de capoeira, comida farta e contação de histórias, principalmente sobre a fundação do quilombo por um marinheiro negro fugido da Marinha Imperial.

Celebração de São Sebastião no Quilombo Lagoa da Pedra (PI)

São Sebastião é cultuado por ser considerado protetor contra doenças e más colheitas. Em janeiro, a comunidade se reúne para três dias de festejo com rezas, ladainhas e toques de tambor de mina.

Os festeiros percorrem as casas com o “bandeirão” do santo, pedindo donativos. Cada parada é marcada por um ritual de bênção e um prato de comida oferecido.

Entrevista com Raimunda do Rosário, 67 anos, raizeira:

“A gente planta a fé como quem planta feijão no roçado. São Sebastião ajuda nossa colheita, cuida da gente. Quando a gente dança pra ele, é uma forma de agradecer com o corpo.”

Durante a noite, há samba de roda, leilão de prendas e concurso de pratos típicos feitos com macaxeira. A festa une espiritualidade, agricultura e arte culinária.

Festa da Liberdade no Quilombo Córrego de Ubaranas (RN)

Diferente das festas religiosas, a Festa da Liberdade acontece todo 20 de novembro, com foco político e educativo. Começa com uma marcha pelas ruas do povoado, com faixas e tambores, denunciando o racismo e celebrando a resistência ancestral.

Na praça central, crianças encenam peças teatrais sobre Zumbi e Dandara, enquanto anciões compartilham histórias de seus avós fugitivos. Uma roda de conversa discute políticas públicas, regularização fundiária e educação quilombola.

Depoimento de Maria Tereza, estudante de direito:

“Nasci aqui e hoje luto por nossos direitos com base no que aprendi nesses encontros. A Festa da Liberdade me fez querer ser advogada.”

No fim do dia, há apresentações de coco de roda e hip hop quilombola. Um grande almoço coletivo encerra o evento, com pratos típicos preparados de forma colaborativa entre todas as famílias.

Cerimônia do “Batismo da Terra” no Quilombo Lagoa dos Cavalos (SE)

Esse ritual único ocorre no início da estação das chuvas, geralmente em fevereiro. É uma celebração mística que une ancestralidade africana, saberes indígenas e devoção católica. A comunidade “batiza” a terra, pedindo fartura, proteção e bênçãos para o cultivo.

A cerimônia começa ao amanhecer com orações ao redor do roçado, onde são enterradas sementes de milho, feijão e macaxeira, enquanto mulheres cantam pontos de jurema. Homens tocam maracás e tambus. A terra é regada com água da mina sagrada da comunidade.

Testemunho de Sebastião José, agricultor:

“Essa cerimônia é sagrada. Aqui não se planta sem batizar a terra. Nossa vida depende do chão, do céu e da benção dos encantados.”

O ritual termina com partilha de alimentos simples: bolo de fubá, café, banana assada e mingau. As crianças plantam mudas e recebem uma bênção com água, simbolizando continuidade da tradição.

Tradições Que Dançam Contra o Esquecimento

As festas e rituais dos quilombos sertanejos são formas de dizer ao mundo: “Estamos aqui. Somos filhos da resistência.” Elas não existem para entreter — existem para lembrar. Cada dança, cada reza, cada fogueira acesa é um grito suave contra o apagamento histórico.

Celebrar essas tradições no blog é mais que compartilhar informação: é ecoar vozes que por séculos foram silenciadas. É devolver o protagonismo a comunidades que mantêm viva uma das culturas mais ricas e profundas do Brasil.

Se você já teve o privilégio de participar de uma dessas celebrações, compartilhe sua história. Se ainda não teve, que este texto seja um convite. Vá, sinta, dance, escute. Porque o que os quilombos ensinam não se aprende em livros — aprende-se com o corpo, com a escuta e com o coração.

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