Perfil de Mulheres Líderes
No coração do sertão nordestino, onde o tempo corre no compasso dos ventos e das rezas, as mulheres quilombolas são mais que figuras centrais da comunidade — são raízes, troncos e folhas da grande árvore da resistência negra. Guardiãs de histórias, curadoras de corpos e espíritos, lideranças silenciosas que fazem do gesto, do canto e do conselho, ferramentas de luta e construção coletiva.
Elas são parteiras, raizeiras, mestras da palavra, agricultoras de subsistência e articuladoras políticas. São vozes que não gritam, mas ecoam. São as mãos que costuram o passado ao presente e ensinam que tradição não é atraso — é alicerce.
Nesta seção, o blog mergulha no universo dessas mulheres que muitas vezes permanecem invisíveis aos olhos da sociedade, mas que sustentam o mundo com a firmeza de quem aprendeu cedo a sobreviver sem pedir licença. Ao conhecer seus perfis, ancestralidades e histórias de vida, somos convidados a refletir, aprender e também a mudar.
Perfil de Mulheres Líderes
Liderar, para muitas dessas mulheres, não é um ato de imposição, mas de cuidado. É estar na linha de frente da luta por direitos, e ao mesmo tempo, na retaguarda, cuidando da comida do mutirão, da criança alheia, do fogo do fogão de barro. Elas não se proclamam líderes, mas são reconhecidas como tais porque nunca deixaram o povo sem direção.
Exemplos marcantes não faltam:
- Dona Maria das Dores, do Quilombo Conceição das Crioulas (PE), que alfabetizou centenas de mulheres e jovens com a Bíblia, o caderno e o chão de barro como sala de aula.
- Maria Joelma, do Quilombo Lagoa do Algodão (PI), que foi a primeira mulher da sua comunidade a assumir um cargo de liderança política e luta pela demarcação do território quilombola.
- Mãe Filomena, do Quilombo São Vicente (CE), que comanda os rituais do jurema sagrada e é respeitada como autoridade espiritual por jovens e velhos.
Cada uma delas é um livro vivo — e é papel da comunicação, do jornalismo e da memória coletiva registrá-las com respeito, cuidado e profundidade.
Gênero e Ancestralidade
Ser mulher em um quilombo é, antes de tudo, carregar uma linhagem. Uma linha ininterrupta de saberes passados de boca em boca, de colo em colo. É ter sido ensinada pela avó a fazer o chá certo para a cólica, a orar para espantar o “mau olhado”, a preparar o pirão de leite nos dias de tristeza.
Essas mulheres são a materialização da ancestralidade em ação. Elas vivem entre o mundo visível e o invisível, entre a labuta do roçado e os rituais da fé. Elas não falam sobre feminismo com as palavras dos livros, mas vivem a autonomia em cada decisão sobre o próprio corpo, a terra, a criação dos filhos, o casamento ou a religião.
Gênero, para elas, é vivido nas relações e nas funções que assumem — e resistem. São mulheres negras, sertanejas e quilombolas, cujas experiências fogem das categorias tradicionais, mas ensinam muito a quem quer ouvir.
Histórias Reais e Invisíveis
Você provavelmente nunca ouviu falar de Dona Etelvina, do Quilombo Cacimbinha (BA). Ela não está em nenhum livro de história, mas carrega nos pés rachados e nas mãos calejadas a luta de três gerações que resistiram à grilagem de terras. Foi ela quem, com mais de 60 anos, liderou uma ocupação pacífica do território ancestral e enfrentou o prefeito da cidade numa audiência pública.
Também não deve conhecer a história de Rosimere Silva, do Quilombo Arapuá (RN), que só conseguiu estudar depois dos 30 anos e hoje é professora da escola comunitária, ensinando crianças que, como ela, nunca foram vistas pelo sistema público.
Essas mulheres são muitas. São a maioria. E ainda assim, permanecem invisíveis aos grandes veículos, às políticas públicas, às narrativas oficiais. Por isso, este espaço é também um território de reparação.
Reflexão Poética
A palavra, nas mãos dessas mulheres, é faca e reza. Elas sabem calar e sabem cantar. Sabem que o silêncio também fala, e que a poesia brota mesmo onde a terra é dura demais. Como um cordel que nasce no improviso, como um samba que embala o parto, como um lamento que vira louvor.
Cada mulher quilombola é um poema em si — inacabado, valente, vivo. E nesse blog, queremos recitar suas histórias com o respeito de quem aprende, e não de quem ensina. Com a escuta de quem se ajoelha para ouvir, e não de quem se impõe com microfone.
As Heroínas Anônimas da Resistência
Crônica: A Mulher do Cuscuz e do Tambor
No meio do sertão nordestino, onde o chão racha de sede, mas o coração pulsa em abundância, vive Dona Raimunda. Não sai no jornal, não é capa de revista, nunca subiu num palanque. Mas se existe alguém que carrega a comunidade nas costas — ou melhor, nas mãos calejadas —, esse alguém é ela.
Dona Raimunda acorda antes do sol, às quatro da manhã. Prepara o fogo no fogão de barro e, com o mesmo cuidado com que se planta feijão, ela molda o cuscuz. Amarela, quente, macia. É mais do que comida — é afeto, é sustento, é símbolo de resistência. Ela diz sorrindo:
“Cuscuz não mata fome só do corpo, mata a fome da alma também.”
Há 40 anos, ela faz o mesmo ritual: cozinha, acolhe, escuta. Quando termina de alimentar quem chega, pega o tambor guardado na sala de taipa. Ali começa outro trabalho — o da cultura, o da memória.
Dona Raimunda é mestre de maracatu, de coco, de ciranda. Ensina às crianças que o som do tambor é o som do coração do povo preto, batendo forte contra o silêncio imposto.
“Aqui, ninguém fica só. A gente canta, dança e se lembra de quem somos.”
Mas seu trabalho não para aí. Quando chega alguém precisando de conselho, é na varanda dela que se senta. Quando falta comida na casa de uma mãe sozinha, é no quintal dela que sai a mandioca, a abóbora, o feijão.
Dizem no quilombo que Dona Raimunda não tem cargo, mas é presidenta da esperança, ministra da solidariedade e governadora do amor.
“Minha luta é fazer com que ninguém esqueça que nós existimos. Nem a gente, nem o mundo lá fora.” — diz ela, segurando uma peneira de milho numa mão e o tambor na outra.
E assim, no compasso entre o cuscuz e o tambor, Dona Raimunda segue há quatro décadas. Invisível para muitos, gigante para os seus.
Série: “Minha Mãe Quilombola”
Quando perguntamos a jovens quilombolas sobre quem é a maior referência de força em suas vidas, as respostas são rápidas, certeiras e emocionantes:
“Minha mãe.”
“Minha avó.”
“Minha tia.”
Essa série nasceu para que esses jovens pudessem colocar em palavras aquilo que às vezes só o coração sabe dizer.
Relatos
Relato de Ana Cláudia, 22 anos, Quilombo Serra do Evaristo – CE:
“Minha mãe é Maria do Socorro. Parteira, rezadeira, agricultora e mãe de oito filhos. Aprendi com ela que a terra não é só sustento, é escola. Quando eu era criança, achava que ela fazia mágica: uma mão no meu peito rezando contra o quebranto, e a outra mexendo a massa do bolo de milho. Minha mãe não sabe ler as palavras do papel, mas lê as nuvens, lê a lua, lê o vento. E foi ela quem me ensinou que não existe vento ruim pra quem aprende a soprar pra frente.”
Relato de João Gabriel, 18 anos, Quilombo Conceição das Crioulas – PE:
“Minha avó, Dona Benedita, me ensinou que cantar é rezar duas vezes. Com ela, aprendi os cantos dos ancestrais, os toques do tambor, e que um povo sem memória é um povo que não se sustenta. Minha avó nunca teve diploma, mas alfabetizou mais de 30 crianças só com paciência, giz de carvão e folhas de caderno amassadas. Ela sempre disse: ‘Filho, liberdade a gente aprende antes de ler’.”
Relato de Luana Silva, 25 anos, Quilombo Lagoa dos Negros – BA:
“Minha mãe, além de cuidar da casa e da roça, é presidenta da associação do quilombo. Ela organiza tudo: da distribuição de sementes à defesa dos direitos na prefeitura. Cresci ouvindo ela dizer: ‘Se a gente não fala, ninguém fala pela gente’. Hoje, eu estudo Direito, porque quero ser a voz dela e das outras mulheres que carregam esse lugar nas costas.”
Reportagem Interativa: Da Roça à Sala de Aula — A História de Dona Severina
Dona Severina tem 63 anos e carrega no rosto as marcas do sol sertanejo e no olhar a força de quem nunca desistiu.
Filha de trabalhadores rurais do Quilombo Lagoa Grande, em Pernambuco, sua infância foi entre roça, tanque de lavar roupa e o cuidado dos irmãos mais novos. Escola? Não havia. E quando teve, era pra poucos.
“Eu olhava de longe os meninos indo, mas meu pai dizia que pra menina bastava saber cozinhar, plantar e rezar.”
Aos 58 anos, depois de criar cinco filhos, viu nascer no quilombo um projeto de alfabetização de adultos. Timidamente, se inscreveu. Lembrou-se da primeira aula como se fosse ontem:
“A professora perguntou meu nome e eu não sabia como escrever. Chorei. Ela pegou na minha mão e disse: ‘Vamos juntas’. E fomos.”
Severina aprendeu a ler, escrever, e não parou mais. Aos 60, prestou o ENCCEJA, concluiu o ensino médio e, dois anos depois, entrou no curso de Pedagogia na Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
“Quando sentei na cadeira da faculdade, olhei pra sala e pensei: ‘Essa cadeira é minha. Aqui também é lugar de mulher preta, velha, quilombola e teimosa’.”
Hoje, Dona Severina é professora na escola do próprio quilombo. Ensina crianças e adultos. Ensina letras, mas também ensina dignidade, história e coragem.
“Eu falo pra eles: vocês não vão mais aprender que a gente veio de escravo. A gente veio de reis, rainhas e guerreiros que fizeram quilombo e fizeram história.”
Na parede da sala dela, uma frase escrita com giz:
“Aqui, todo mundo aprende. E quem ensina, aprende mais ainda.”
Reflexão Final
Essas histórias não aparecem na televisão. Não estão nos livros de história que aprendemos na escola. Mas estão vivas, pulsando no sertão, nas quebradas de barro, nas mãos que fazem o cuscuz, nos tambores que batem, nas vozes que cantam e nas lágrimas que se transformam em letras.
Se você chegou até aqui, leve uma pergunta consigo:
Quantas Dona Raimunda, quantas Dona Severina, quantas Marias e Benedita existem invisíveis aos olhos do mundo, mas tão presentes na construção da nossa verdadeira história?
Você Conhece Alguma Mulher Quilombola? Como Iniciar uma Conversa com Ela?
Se você tiver a sorte de conhecer uma mulher quilombola, não chegue com pressa. A conversa começa no olhar, no sorriso, no café passado na hora. Leve tempo, ouça mais do que fale. Elas testam com o olhar se sua presença é respeito ou curiosidade vazia. Não vá com perguntas prontas. Vá com perguntas abertas:
- “Como foi sua infância?”
- “Quem te ensinou a plantar?”
- “O que te dá orgulho da sua comunidade?”
- “Qual história da sua avó você mais gosta de contar?”
Essas perguntas abrem portas. Mas só se forem acompanhadas de escuta atenta, corpo presente e coração desarmado.
Como Entrevistar uma Mulher do Quilombo
Entrevistar uma mulher quilombola não é uma pauta qualquer. É um encontro. Um pacto de confiança. E, como tal, exige cuidado:
- Antes de tudo, peça permissão. Explique por que você quer ouvir e o que pretende fazer com o que ouvirá.
- Evite interrupções. Deixe que a memória venha no tempo dela — às vezes, a melhor parte da entrevista vem depois da pergunta.
- Aceite os silêncios. Eles fazem parte da fala.
- Não force temas delicados. Muitas mulheres carregam traumas de violência, racismo ou luto. Se não quiserem falar, não insista.
- Leve um presente simbólico. Um livro, uma muda de planta, uma lembrança da sua terra — como sinal de respeito e reciprocidade.
- Ofereça retorno. Mostre a entrevista depois, pergunte se ela se sente confortável. Valorize sua fala como algo sagrado.
Entrevistar uma mulher quilombola é, em essência, ouvir o sertão falando com voz de resistência e poesia.
O que achou desse conteúdo? você concorda que as mulheres quilombolas são verdadeiras guerreiras?