No sertão nordestino, onde o horizonte parece não ter fim e o céu abraça a terra com uma luz dourada, a infância quilombola floresce com uma beleza que poucos conhecem e muitos não enxergam. Longe das telas, dos brinquedos industrializados e da lógica consumista das grandes cidades, as crianças quilombolas crescem em um mundo onde a imaginação corre livre, a sabedoria ancestral se transmite no toque, no olhar, na palavra, e os sonhos são moldados no barro, no chão batido, na sombra dos juazeiros e nos ventos que sopram histórias de resistência.
Ali, cada pedaço de pau vira espingarda de brincar, cada pedaço de pano se transforma em boneca, cada pedrinha é peça de um jogo inventado. Brincar no quilombo não é apenas uma forma de passar o tempo — é também um ato de afirmação, de aprendizado e de conexão com a própria história. As crianças não apenas brincam, elas herdam, em cada risada e em cada corrida descalça, os ensinamentos de gerações inteiras que lutaram pela liberdade, pela dignidade e pelo direito de existir.
Infância no Quilombo: Crescer com Raízes Fortes
Ser criança em um quilombo do sertão nordestino é viver uma infância que muitos poderiam chamar de simples, mas que é, na verdade, profundamente rica. Rica em natureza, rica em cultura, rica em afetos, rica em saberes.
Desde cedo, os pequenos aprendem o valor da coletividade. As casas não têm muros que separam, mas sim cercas simbólicas de respeito, solidariedade e cuidado mútuo. A avó é mãe, a vizinha é tia, o vizinho é tio, e todo mundo cuida de todo mundo. O conceito de família extrapola os laços sanguíneos. Criança quilombola não cresce sozinha; cresce acompanhada, observada, acolhida.
O dia começa cedo. O som do galo se mistura ao barulho das panelas no fogão de lenha, ao cheiro do café coado e do cuscuz que vai sendo preparado. Logo cedo, a meninada já está solta, correndo pelo terreiro, ajudando nos pequenos afazeres — buscar água, juntar lenha, alimentar as galinhas — e logo se entrega às brincadeiras, aos inventos e às aventuras que só quem cresce no mato conhece.
Brincadeiras de Chão Batido: Onde Mora a Alegria
O chão batido do terreiro, que esquenta com o sol e esfria ao entardecer, é palco de inúmeras brincadeiras. Ali se constroem mundos inteiros. A terra vira tinta, vira massa, vira estrada. As folhas são dinheiro em mercados imaginários, as sementes são miçangas de colares, as cabaças secas viram instrumentos musicais ou vasilhas para guardar segredos.
Brincadeiras como “passa anel”, “esconde-esconde”, “pular corda”, “pega-pega”, “barra-manteiga” e “queimado” fazem parte do repertório, mas sempre ganham versões próprias, adaptadas ao contexto local, com cantigas e rimas que carregam sotaques, ditados e ensinamentos ancestrais.
Os brinquedos, muitas vezes, são feitos pelas próprias crianças ou pelos mais velhos. Bonecas de pano, carrinhos de madeira, estilingues, piões, brinquedos de folha de palmeira e de cabaça. Cada um desses objetos carrega mais do que diversão — carrega a memória de um povo que aprendeu, geração após geração, a fazer do pouco muito.
O riso solto, o pé descalço, o cabelo ao vento. Tudo isso faz parte de uma liberdade que, embora cercada pelas dificuldades estruturais do sertão, se sustenta na força da coletividade e na beleza da simplicidade.
Histórias e Contações: O Saber que Não Está nos Livros
Quando o sol se despede no horizonte e pinta o céu de tons alaranjados, começa outro tipo de brincadeira — aquela que mora nas palavras. Na sombra do juazeiro, em roda na frente da casa, ou sentados na beira do fogão de lenha, os mais velhos começam a contar histórias. E não são histórias quaisquer — são fios de memória que tecem a identidade quilombola.
Os contos sobre a criação do mundo, sobre os animais encantados, sobre os negros fugidos, os heróis dos quilombos, os encantados das matas e das águas, são passados de geração em geração. São mais do que lendas: são ferramentas de educação, de resistência, de preservação cultural.
A criança quilombola cresce ouvindo sobre como seus antepassados lutaram contra a escravidão, sobre como construíram aquele pedaço de chão com suas próprias mãos. Aprende, desde cedo, que sua existência é um ato político, um ato de resistência. Aprende também a rir, a sonhar e a se orgulhar de quem é.
As histórias não estão nos livros das escolas, nem nas manchetes dos jornais, mas vivem na memória coletiva, nas palavras que ecoam de boca em boca, de geração em geração. E é assim que o saber se perpetua, forte como raiz de juazeiro.
Desenhos e Jogos Passados: A Arte de Brincar e Ensinar
Além das brincadeiras físicas e das histórias contadas, existe um universo lúdico que se expressa nos desenhos feitos no chão com pedaços de carvão ou na areia. Mandalas, casinhas, animais, mapas imaginários do mundo… Cada traço carrega mais do que criatividade, carrega também memória e desejo.
Jogos como “cinco-marias”, feitos com pedrinhas ou saquinhos de pano, e desafios de cantigas de roda são passados como se fossem heranças. Não são só passatempos — são formas de ensinar matemática, estratégia, coordenação, paciência e, sobretudo, coletividade.
Ali, não há vencedores e perdedores no sentido competitivo das brincadeiras urbanas. O que importa é estar junto, é rir, é compartilhar, é aprender uns com os outros.
A infância quilombola no sertão nordestino é uma das expressões mais puras da resistência cultural. Nela, o brincar se mistura com o aprender, o riso se entrelaça com a história, e cada gesto simples carrega a grandiosidade de um povo que nunca se permitiu desaparecer, apesar de todas as tentativas de apagamento.
Ao olhar para essas crianças — correndo livres, criando mundos no chão batido, ouvindo as histórias dos mais velhos, desenhando seus sonhos na areia — entendemos que ali não se cria apenas gente, mas também se cultiva futuro, dignidade e resistência.
Este é um convite para que possamos ouvir, ver e valorizar essas infâncias, que são a prova viva de que, no sertão e nos quilombos, a vida floresce onde muitos só enxergam seca. Porque, ali, cada criança carrega no peito não apenas um coração que bate, mas um tambor que ecoa a memória de todo um povo.
Infância no Quilombo: Crescer com Raízes Fortes
A infância nos quilombos sertanejos é profundamente ligada ao território, à comunidade e à ancestralidade. Não é uma infância isolada, desconectada, mas sim inserida em uma rede de afetos, trabalho comunitário e saberes transmitidos diariamente.
Crescer em um quilombo significa aprender desde muito cedo que a terra é mais do que solo — é sustento, história e abrigo. É comum ver crianças acompanhando os pais e avós nas atividades do roçado, aprendendo a plantar feijão, milho, mandioca e cuidar dos pequenos animais. Ao mesmo tempo, aprendem sobre as plantas medicinais, sobre as estações do ano e sobre os sinais que a natureza dá.
Mas se engana quem acha que isso rouba a leveza da infância. Pelo contrário, esse contato direto com a vida fortalece, ensina e dá autonomia. A infância quilombola é livre, diversa, cheia de experiências sensoriais que crianças de contextos urbanos dificilmente vivenciam.
Elas crescem correndo no mato, nadando nos riachos, subindo em árvores, colhendo frutas no pé e participando dos mutirões comunitários. Cada gesto, cada tarefa, cada brincadeira carrega um ensinamento que dialoga com a história e a resistência do povo quilombola.
Brincadeiras de Chão Batido: O Universo Encantado da Infância Quilombola
No terreiro, no quintal, nas trilhas do mato ou na sombra do juazeiro, a brincadeira nunca para. As crianças inventam seus mundos e suas próprias regras, misturando tradição e criatividade.
Brinquedos Feitos à Mão
- Bonecas de pano: feitas com retalhos de tecido, enchidas com algodão ou palha.
- Carrinhos de lata ou madeira: construídos com pedaços de madeira, rodas de tampa de garrafa e até barbante.
- Pião: feito de madeira torneada manualmente, rodado com um cordão.
- Estilingue (baladeira): montado com galhos em formato de forquilha e tiras de borracha.
Brincadeiras Tradicionais
- Ciranda: feita em roda, com cantigas tradicionais que ensinam e divertem.
- Pular elástico: usando elásticos amarrados, onde a brincadeira exige equilíbrio e criatividade.
- Amarelinha: desenhada no chão com pedaço de carvão, pedra ou graveto.
- Barra-manteiga: corrida de perseguição, onde se corre em linha até que um pegue o outro.
Jogos Culturais
Muitos jogos não têm nome fixo, mas são passados oralmente, baseados em desafios, adivinhações e repentes entre as crianças. Além da diversão, são momentos de fortalecimento dos laços comunitários e da identidade quilombola.
Histórias e Contações: A Enciclopédia Viva da Ancestralidade
Quando o sol se esconde atrás dos morros e a brisa fresca anuncia a noite, começa um dos momentos mais esperados pelas crianças: a roda de histórias. A contação não é apenas entretenimento, é um ato de formação.
O que se conta:
- Histórias de encantados: seres protetores da mata, das águas e dos animais.
- Contos de resistência: sobre os antepassados que fugiram dos senhores de engenho, construíram quilombos e resistiram à escravidão.
- Lendas locais: do vaqueiro encantado, da mulher de branco, do fogo-fátuo que dança no brejo.
- Sabedoria ancestral: causos que ensinam respeito, coragem, generosidade, cuidado com a natureza e com os mais velhos.
As crianças ouvem atentas, muitas vezes deitadas no colo das avós, olhando para o céu estrelado enquanto imaginam mundos que se misturam ao seu próprio.
Cada história tem um porquê, um ensinamento e uma missão: preservar a memória coletiva e fortalecer a identidade negra e quilombola.
Desenhos e Jogos Passados: Arte, Memória e Afeto
Desenhar no chão de barro, riscar na areia com gravetos ou pedras, é uma prática comum. Esses desenhos não são apenas passatempo, são registros simbólicos, mapas afetivos do mundo que as crianças constroem.
- Desenham cabanas, animais, plantas, rios e pessoas, representando o universo que as cerca.
- Fazem mapas do quilombo, desenhando onde fica o roçado, o rio, o terreiro, a casa da avó, o juazeiro.
Jogos Passados:
- Cinco-marias: jogado com pedrinhas, exercita destreza e concentração.
- Desafio das adivinhas: quem erra paga prenda, que pode ser pular numa perna só, dar uma volta correndo ou cantar uma música.
- Jogo da memória oral: os mais velhos falam palavras em sequência e as crianças devem repetir na ordem correta, desafiando a memória coletiva.
Esses jogos são mais do que diversão — são ferramentas de desenvolvimento cognitivo, emocional e social, transmitidas geração após geração.
Reflexão
O que os olhos desavisados poderiam chamar de uma infância simples, na verdade, é uma infância de enorme riqueza cultural, simbólica e afetiva. Brincar, ouvir histórias, desenhar no chão, correr pelo mato, viver livre e em coletividade não é só infância — é também resistência.
A infância quilombola é o solo fértil onde germina a memória dos ancestrais, o orgulho da identidade negra e a esperança de futuros mais justos e livres. É, acima de tudo, uma infância que carrega no peito um ensinamento valioso: mesmo diante das dificuldades, a dignidade, a alegria e a coletividade são sementes que nunca param de brotar.
Relatos Vivos: Memórias de Infâncias no Quilombo
Relato 1 — Maria das Dores, 67 anos, Quilombo Conceição das Crioulas (PE)
“Quando eu era menina, a gente brincava de roda na sombra do juazeiro. As bonecas eram de pano, feitas pela minha avó, Dona Severina. Ela dizia que cada boneca carregava um pedaço da nossa história. Enquanto costurava, ia contando: ‘Essa aqui é tua bisavó, que fugiu lá do engenho, escapando de feitor, e veio se esconder aqui nessas terras.’ E assim a gente crescia, sabendo de onde vinha e pra onde precisava ir.”
Relato 2 — João Benedito, 72 anos, Quilombo Lagoa da Pedra (BA)
“Menino, meu brinquedo era um carrinho feito de lata. Meu pai fazia e dizia: ‘A gente não tem dinheiro pra comprar, mas tem mão boa pra fazer’. Aprendi ali que o que o mundo não nos dá, a gente constrói com as próprias mãos. O terreiro era nossa pista, nosso mundo. E à tardinha, todo mundo se juntava pra ouvir as histórias dos antigos. As histórias ensinavam mais que qualquer escola.”
Relato 3 — Ana Celeste, 52 anos, Quilombo Piau (MG)
“Minha infância foi cheia de canto. Minha mãe fazia farinha, mexendo no tacho, e cantava ladainhas e pontos de terreiro. A gente brincava ao som do tambor que meu avô fazia com couro de bode. O som do tambor, pra mim, era mais que música — era abraço, era chamada, era reza.”
Relato 4 — Severino de Jesus, 64 anos, Quilombo Malhada Grande (RN)
“Lembro de brincar de pega-pega no meio do roçado. Corria entre a plantação de milho, caía, levantava. E quando a mãe da gente chamava, era pra ajudar na busca das ervas: boldo, alecrim, erva-cidreira. Minha mãe dizia que a gente tinha que saber ouvir a natureza, que a planta fala pra quem quer escutar.”
Tecendo Saberes: O Papel da Oralidade na Infância Quilombola
Em cada brincadeira, há uma aula. Em cada roda de história, um livro aberto. A oralidade nas infâncias quilombolas não é passatempo — é documento, é herança viva.
- As avós são bibliotecas ambulantes.
- Os pais são guardiões dos mapas do território.
- As crianças são sementes de futuro.
A cada narrativa, transmite-se:
- O nome dos rios.
- A história do primeiro quilombo da comunidade.
- O porquê daquele monte ter aquele nome.
- Quem foi a mulher que, sozinha, desafiou o coronel e garantiu a posse da terra.
Essa transmissão gera pertencimento. Crianças que sabem de onde vêm não se curvam ao racismo, não aceitam serem chamadas de menos, não se perdem da sua própria história.
Crônica Inspirada — “O Menino e o Tambor de Barro”
No terreiro batido de poeira fina, Zeca corria descalço. Seus pés conheciam cada pedra, cada rachadura do chão. Enquanto os mais velhos mexiam a farinha no tacho, ele fazia seu próprio tambor.
Pegou um pedaço de barro, moldou com cuidado, fez um cilindro. Pediu ao avô um pedaço de couro e, com cordas trançadas de sisal, prendeu a pele no topo. Estava pronto.
Na primeira batida, não saiu som. Na segunda, um tum surdo. Na terceira, o tambor falou.
O avô sorriu:
— “Esse tambor agora tem alma, menino. Alma de quem não esquece de onde veio.”
E Zeca nunca esqueceu. Nem do tambor, nem da história que aquele som carregava.
Roda de Desenho: O Quilombo na Imaginação Infantil
Perguntar a uma criança quilombola “Desenha tua casa” é assistir ao nascimento de um mapa afetivo:
- Tem o juazeiro no canto.
- A casa da vó com telhado de barro.
- O terreiro onde fazem o mutirão.
- O rio onde pescam tilápia.
- O forno de barro onde assam beiju.
Esses desenhos são registros culturais valiosíssimos. Guardam o modo de vida, os saberes locais, os sonhos e as resistências cotidianas.
Jogos que Ensinaram Sobre a Vida
Mais do que passatempo, os jogos quilombolas são metáforas da vida:
- Na amarelinha, aprendem que a vida é equilíbrio.
- Na ciranda, entendem que só se dança se todo mundo der a mão.
- Nas adivinhas, percebem que o saber está no olhar atento e na escuta cuidadosa.
- No esconde-esconde, descobrem que até quem se esconde precisa, em algum momento, ser encontrado.
Reflexão Poética Final: A Infância que Resiste e Inspira
“O chão batido é escola.
O barro é giz.
O rio é quadro-negro onde se escreve o amanhã.
A infância quilombola não cabe em manuais, nem em apostilas.
Ela pulsa no tambor, corre nas pernas ligeiras das crianças, vive nas palavras das avós.
Ela ensina que brincar também é resistir, que ouvir é tão importante quanto falar, e que o mundo pode ser muito maior do que aquele que tentam impor.”
Me diz, você conhece alguma criança de alguma comunidade quilombola? Conhece alguma brincadeira parecida das que foram contadas? Conta pra gente nos comentários!