Entre a Fé e a Resistência: Religiosidade nos Quilombos Sertanejos

Entre a Fé e a Resistência: Religiosidade nos Quilombos Sertanejos

Onde a Fé é Território, Corpo e Luta

No sertão nordestino, onde a terra é dura e o sol castiga, há uma força que não se vê, mas que se sente — uma força que pulsa nas rezas baixadas, nos toques dos tambores, nas velas acesas diante dos altares domésticos, nas ervas penduradas nos terreiros, nos fiapos de fé que tecem a vida dos povos quilombolas. É uma religiosidade que não cabe em rótulos, que não se limita aos muros das igrejas nem aos círculos fechados dos terreiros. Ela transborda. É fé moldada na resistência, na dor, no amor, na ancestralidade e no enfrentamento cotidiano.

Nos quilombos sertanejos, a fé não é apenas crença — é também abrigo, cura, proteção e afirmação de identidade. É um lugar onde o sagrado se mistura ao profano, onde o catolicismo popular se entrelaça com os saberes ancestrais africanos e indígenas, onde cada santo tem rosto negro e cada reza carrega a voz dos ancestrais.

O terreiro é, ao mesmo tempo, espaço de festa e de reza, de celebração e de luta. O altar da sala de casa, com suas imagens de santos, convive lado a lado com folhas de arruda, espada-de-são-jorge, pembas riscadas e potes de água benta. Aqui, Deus, os Orixás e os encantados do sertão conversam, se abraçam, se reconhecem e caminham juntos, na mesma jornada de quem nunca deixou de resistir.

Catolicismo Popular: O Santo é Nosso, o Rito é da Terra

O catolicismo popular nas comunidades quilombolas do sertão não é aquele formal, distante, das catedrais urbanas. É um catolicismo de chão batido, de fé compartilhada, de procissões simples, de promessas pagas com velas, fitas, flores, de missas rezadas no pátio de casa ou debaixo do juazeiro.

Aqui, Nossa Senhora é negra, é mãe que acolhe, que protege o povo da seca, da fome, da injustiça. Santo Antônio não é só casamenteiro; ele é guardião dos roçados, protetor das sementes. São Sebastião não é só mártir; é defensor contra a peste, a fome e a perseguição.

Os festejos religiosos são muito mais que celebrações de fé — são atos de resistência. As novenas, os leilões, as ladainhas, os terços rezados coletivamente são, ao mesmo tempo, momentos de fortalecimento espiritual e encontros comunitários que reafirmam laços, memórias e pertencimento.

Essa fé não é submissa. Ela não aceita o Deus do opressor. Ela reelabora, ressignifica, se apropria dos símbolos e dos rituais para transformá-los em ferramentas de resistência cultural.

Crenças Africanas Ressignificadas: O Sagrado que Veio nos Porões

Nos navios negreiros que cruzaram o Atlântico, não vieram apenas corpos acorrentados. Vieram também saberes, cosmologias, espiritualidades inteiras. Vieram os Orixás, os Inquices, os Voduns, os encantados, os ancestrais — guardados no peito, escondidos nas cantigas, disfarçados nos santos católicos.

Nos quilombos sertanejos, essa espiritualidade africana se misturou com os elementos do sertão, com as crenças dos povos indígenas e com o catolicismo imposto. Daí nasce uma religiosidade híbrida, mestiça, profundamente brasileira, onde:

  • Iansã dança no vento que levanta o pó do chão rachado.
  • Xangô brande seu machado nas trovoadas que anunciam a chuva esperada.
  • Oxum corre nos fios d’água que alimentam os pequenos riachos escondidos no sertão.
  • Ogum abre os caminhos das estradas de chão, dos roçados e da vida.

Essas crenças, muitas vezes, foram escondidas sob véus de silêncio para escapar da perseguição, mas nunca deixaram de existir. Elas estão nas rezas, nos pontos cantados, nas folhas usadas nas benzeções, nos banhos de descarrego feitos com ervas da caatinga.

Aqui, a espiritualidade é corpo, é território e é também resistência cultural e política. Ela protege, cura, orienta e dá sentido à existência de um povo que, desde a escravidão, aprendeu que viver é, também, um ato de luta.

Os Santos Negros: Imagens que Refletem a Pele e a História

Nos altares dos quilombos sertanejos, não faltam os santos negros, figuras que representam não só o sagrado, mas também a memória e a dignidade da população afrodescendente.

  • São Benedito, o santo cozinheiro, é símbolo de quem serve, alimenta e acolhe. Seu rosto negro sobre o altar é lembrança viva de que o trabalho, a partilha e a solidariedade também são sagrados.
  • Santa Ifigênia, com sua pele escura e seu manto azul, representa a força da mulher negra, da fé que atravessou séculos de dor e nunca se curvou.
  • Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, negra como as águas do rio Paraíba onde foi encontrada, é mais do que um símbolo religioso — é prova concreta de que o sagrado tem cor, tem rosto e tem voz.

Esses santos não são apenas objetos de devoção. Eles são espelhos. Eles dizem às crianças quilombolas que Deus se parece com elas, que a santidade também tem cabelo crespo, nariz largo e pele retinta. Eles rompem com a colonização da imagem e afirmam uma teologia preta, sertaneja, popular e profundamente libertadora.

Relato de Fé: Dona Severina e o Altar de Terra

“Quando a seca apertou, a gente não tinha mais nem água pra beber. Mas minha avó, Dona Severina, nunca deixou de acender a vela no altar. Era um altar simples, de barro, feito por ela mesma. Tinha Nossa Senhora, tinha São Benedito, tinha um galho de arruda e uma pedra que ela dizia que era encantada.

Um dia, ela me chamou e disse: ‘Menina, o povo pensa que fé é só ajoelhar e rezar. Fé é acordar todo dia e ir pra roça, mesmo sem saber se a chuva vem. Fé é cozinhar o que tem e repartir. Fé é rezar, sim, mas é também lutar.’

Eu nunca esqueci. E quando ela morreu, foi na sala, na frente do altar, com uma vela acesa e um sorriso. Ela foi embora do jeito que viveu: com fé e com dignidade.”

A Fé que Alimenta, Protege e Liberta

No sertão quilombola, fé não é só salvação do além. É proteção do agora. É segurança espiritual, é fortalecimento comunitário, é afirmação de uma identidade negra e sertaneja que se recusa a ser apagada.

  • A missa convive com o batuque.
  • A vela acesa convive com o banho de folhas.
  • O santo católico convive com o encantado da mata.

Aqui, o sagrado não se divide — ele se multiplica. E, mais do que qualquer coisa, ele resiste. Porque resistir, para esse povo, sempre foi, também, um ato de fé.

Origens e Sincretismo: A Chegada do Catolicismo aos Quilombos e Seus Encontros com a África e os Povos Originários

Quando pensamos na espiritualidade dos quilombos do sertão nordestino, não estamos apenas falando de fé, mas de uma poderosa ferramenta de resistência, de construção de identidade e de preservação cultural.

O catolicismo chegou ao Brasil trazido pelos colonizadores portugueses, imposto como religião oficial e instrumento de dominação. Mas, nos quilombos, essa religião não foi simplesmente absorvida. Ela foi ressignificada, reinterpretada e misturada aos saberes africanos e indígenas, dando origem a uma religiosidade singular, cheia de códigos, símbolos e significados próprios.

Os povos africanos, ao serem brutalmente sequestrados de seus territórios, trouxeram na memória e na alma seus orixás, suas entidades, seus ritos e sua relação espiritual com a natureza. Ao se depararem com o catolicismo imposto, encontraram estratégias para preservar sua fé, muitas vezes ocultando-a sob os santos católicos.

Por exemplo, São Jorge se associou a Ogum, guerreiro da proteção e da luta. Nossa Senhora do Rosário tornou-se guardiã das forças femininas, símbolo de resistência, acolhimento e amor.

Além disso, os povos indígenas, habitantes originais do território, também já possuíam uma relação espiritual profunda com os elementos da natureza: o rio, o vento, o fogo e as árvores eram — e são — entidades vivas. Ao se encontrar com os povos negros fugitivos, os saberes se cruzaram, criando uma religiosidade híbrida, rica e profundamente enraizada no território sertanejo.

Nos quilombos, portanto, não há separação rígida entre o católico, o africano e o indígena. A bênção vem com uma vela acesa para um santo, com um banho de ervas na cabeça e uma reza de proteção cantada no idioma da resistência.

Festas e Romarias: Caminhadas de Fé, Crença e Identidade

Se as rezas diárias mantêm viva a espiritualidade nas casas, as festas e romarias são o ápice da manifestação comunitária da fé.

As celebrações nos quilombos sertanejos são marcadas pela mistura do sagrado e do profano. As Festas de São Sebastião, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de São Benedito e da Santa Cruz são momentos que unem a comunidade em torno da fé, da música, da dança e da partilha.

Festa de São Sebastião

Realizada geralmente no mês de janeiro, é um momento de agradecimento e pedidos de proteção contra doenças, secas e males. A imagem do santo é carregada em procissão, acompanhada de rezas, ladainhas, tambores e foguetões.

Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

Essa é, sem dúvida, uma das mais emblemáticas festas da cultura quilombola. Nela, além das missas, há as danças de Congada, Moçambique e o Reisado. As coroações da rainha e do rei do Rosário simbolizam a realeza africana que resiste no território brasileiro.

Romarias aos Santuários

Muitos quilombolas fazem longas caminhadas até santuários como o de Canindé (CE), dedicado a São Francisco, ou Bom Jesus da Lapa (BA). Nessas caminhadas de fé, a cada passo se reza, se canta e se reafirma que a espiritualidade é uma forma de superar a dor e celebrar a vida.

As festas também são momentos de fortalecimento da economia comunitária, onde as mulheres vendem comidas típicas — bolos, doces, beiju, carne de bode — e os homens tocam zabumba, pandeiro e sanfona.

Casas de Fé: Oratórios, Terços e Missas Comunitárias

No sertão, antes mesmo da existência de uma igreja física, existe o altar dentro de casa. Chamado de oratório, ele é um espaço sagrado onde se acendem velas, se fazem pedidos, se agradece e se conversa com Deus, com os santos e com os ancestrais.

Em cada oratório há uma imagem principal — São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário ou outro santo de devoção — rodeada de flores de plástico, terços, escapulários e fotografias de entes queridos que já partiram.

Toda sexta-feira é dia de rosário cantado, quando as famílias se reúnem para rezar. As vozes se alternam nos mistérios do terço, entoados em ladainhas que misturam português com expressões africanas e indígenas.

Além disso, as missas nas pequenas capelas comunitárias são organizadas pelos próprios moradores, que cuidam da limpeza, da ornamentação e da acolhida, mesmo quando não há padre. Nesses espaços, a fé se constrói de forma coletiva, colaborativa e profundamente afetiva.

Relato Real: Dona Severina, Guardiã do Rosário

Dona Severina tem 83 anos, mora no Quilombo Lagoa dos Campinhos, em Sergipe, e é reconhecida na região como a “Guardadora do Rosário”.

Ao chegar em sua casa, o visitante logo percebe o oratório cheio de velas, imagens de santos, flores e fotos antigas. Ao ser questionada sobre sua história, ela responde sorrindo:

“Aprendi a rezar o rosário com minha avó, que aprendeu com a mãe dela, que foi uma das fundadoras do quilombo. Desde menina, toda sexta-feira, a gente se reunia debaixo do juazeiro, com lamparina, cantava o terço e fazia as preces. Quando minha avó se foi, eu prometi que nunca ia deixar o rosário morrer.”

Dona Severina não sabe ler nem escrever, mas carrega na memória todos os mistérios, as ladainhas e os cantos. Ela afirma que, enquanto tiver força, vai continuar reunindo a comunidade.

“Aqui não é só rezar. É pedir proteção pra chuva cair, pro feijão vingar, pra doença não pegar. E é também pra agradecer, pra se sentir junto dos nossos que já se foram e dos que tão aqui lutando.”

A Fé Como Território de Resistência

Nos quilombos sertanejos, a fé não é alienação — é resistência, é abrigo, é força coletiva. Cada vela acesa, cada ladainha entoada e cada festa celebrada carrega o peso da memória, da luta e da esperança de um povo que nunca se curvou.

É essa fé que mantém viva a conexão com os ancestrais, que fortalece as lutas contemporâneas por terra, educação, saúde e respeito.

No sertão, onde a vida é dura, a espiritualidade é também uma ferramenta de transformação social, de denúncia das desigualdades e de afirmação de uma identidade que insiste em florescer, como um mandacaru depois da chuva.

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