A Voz do Quilombo: Poetas e Cantadores da Resistência Sertaneja

roda de cantorias nos quilombolos

Quando a palavra vira arma e abrigo

No sertão nordestino, onde o sol desenha rachaduras no chão como linhas de um texto ancestral, a palavra não é só fala — é semente. Ela brota na boca do povo como flor agreste, regada com suor, esperança e o peso da memória. A palavra ali não é adorno: é ferramenta de luta, instrumento de cura, abrigo contra a aridez da vida. E nos quilombos sertanejos, ela carrega ainda mais: carrega a herança dos que resistiram ao cativeiro, dos que plantaram liberdade com as próprias mãos e dos que transformaram dor em canto.

Quando o corpo não podia marchar, foi a palavra que avançou. Quando a fome batia e a terra negava o verde, era no verso que os sonhos eram colhidos. Entre o silenciar da sociedade e o barulho do preconceito, os poetas e cantadores quilombolas transformaram o silêncio em som e o esquecimento em história. Eles não esperaram a caneta do historiador ou a lente do jornalista: fizeram da própria voz o arquivo vivo de sua existência. E continuam fazendo.

A poesia que nasce nesses lugares não se alimenta de prêmios literários ou vitrines editoriais. Ela cresce debaixo da lona das casas de barro, nos bancos de madeira sob a sombra do juazeiro, nas feiras livres, nos festejos de santo e nos intervalos do trabalho duro da roça. É uma poesia dita, cantada, improvisada, passada de boca em boca como receita antiga, como segredo de família. É resistência enraizada no peito de um povo que faz da palavra uma arma contra o esquecimento e um abrigo diante da injustiça.

Palavra que vem do chão

No sertão, onde a escassez se impõe como lei, tudo que sobrevive é por teimosia. E é exatamente essa teimosia que molda a palavra dos poetas quilombolas. Uma palavra que não precisa ser erudita para ser profunda, que não precisa de livro para existir — ela habita as paredes de taipa, os muros riscados de carvão, os cantos que embalam os filhos e os corpos em roda.

Essa palavra brota como mandacaru depois da chuva: espinhosa, sim, mas cheia de vida. Carrega o som do tambor, o cheiro da terra molhada, o riso rasgado e o lamento preso na garganta. É uma literatura que se recusa a morrer, mesmo quando não é reconhecida pelos cânones oficiais. Porque ela não precisa de licença para existir — ela é viva, urgente, necessária.

Nas comunidades quilombolas do sertão, a palavra é também forma de organização social. Em muitos desses territórios, onde o Estado é ausente e a justiça tarda, é o verso que denuncia a violência, que convoca para a luta, que reforça o pertencimento. Os cordelistas, os cantadores, os repentistas, os mestres da embolada — todos eles são cronistas da própria comunidade. Contam o que viram, o que ouviram, o que ninguém mais contou. São historiadores da oralidade, repórteres da alma popular.

Herança ancestral em forma de verso

A palavra também carrega heranças. E nos quilombos, essa herança é africana, é indígena, é negra como o carvão da fogueira acesa no meio da noite para aquecer o corpo e alimentar a conversa. A musicalidade, a oralidade, o improviso — tudo isso ecoa práticas culturais que vieram nos navios negreiros, resistiram ao açoite, e encontraram refúgio nas terras de resistência que hoje chamamos de quilombos.

Na ausência da escrita, foi a oralidade que guardou os nomes dos antepassados, os ensinamentos das parteiras, as rezas das benzedeiras, os rituais dos curadores de alma. A poesia quilombola não é apenas arte — é arquivo sagrado, memória viva, código de sobrevivência.

Quando um poeta como Zé de Souza, do sertão da Paraíba, canta que “a terra seca não cala / o grito do meu tambor”, ele está dizendo mais que uma metáfora: está reafirmando que o sertão negro fala, sim, e fala alto, mesmo quando o mundo não quer ouvir.

Cordel, cantoria e consciência

Os cordéis escritos por mãos quilombolas não são só literatura popular — são manifestações de consciência política. Neles, encontramos denúncias de grilagem de terras, protestos contra a ausência de escolas, críticas à violência policial, lamentos por jovens perdidos para o tráfico ou para o preconceito. Mas encontramos também celebrações: do nascimento de uma criança, da colheita farta, do casamento sob a lua cheia, do resgate de uma tradição esquecida.

Essa poesia é ferramenta de ensino. Muitos jovens aprendem a ler através dos cordéis. Muitos idosos que nunca foram alfabetizados conhecem de cor estrofes inteiras. A palavra circula — nas feiras, nos postes de luz, nas paredes das escolas, nos panfletos dos encontros quilombolas.

A cantoria de viola, por sua vez, é uma aula pública de resistência. Dois poetas, uma plateia, um tema e a genialidade de improvisar rimas com crítica, graça e indignação. A plateia ri, chora, reflete. O poeta não só diverte: ele forma, ele informa, ele mobiliza. É com palavras que ele planta no ouvinte a semente do pertencimento e da luta.

Quando a palavra cura

Para além da política, a palavra também abriga. Nos momentos de dor, é ela que conforta. As rezadeiras e raizeiras dos quilombos muitas vezes usam versos para curar: “Dores que o mundo não cura / palavra de fé alivia”, já dizia Dona Lurdes, parteira da comunidade de Queimada Grande, no sertão baiano.

A palavra tem o poder de fazer com que o sertanejo se veja, se sinta representado, se entenda como parte de algo maior. A cada verso cantado, o quilombo se fortalece — e isso é revolução silenciosa.

Nos batizados, nas novenas, nas rodas de São Gonçalo, nas festas de reis, nas alvoradas de São Benedito, a palavra é sempre presença. É ela quem anuncia, conduz, organiza, protege. É palavra como guia espiritual, como trilha para não se perder, como bússola de pertencimento.

Um território simbólico

Na ausência de mapas, a palavra vira geografia. Cada poema quilombola é um mapa da luta negra no sertão. Ele aponta as dores, os rios secos, os troncos, mas também os caminhos, os frutos e as esperanças.

Essa literatura, portanto, não é apenas cultura — é território simbólico de ocupação, espaço de disputa de narrativas. Quando um poeta quilombola escreve, ele está dizendo: “eu existo, meu povo existe, e não vamos mais aceitar sermos invisíveis.”

O cordel pendurado na venda é um grito. O repente na rádio comunitária é um manifesto. O canto de roda é um protesto com melodia. Tudo isso é palavra viva.

Um convite à escuta

Essa introdução é também um convite: que este blog seja lugar de escuta. Que as palavras aqui escritas sirvam para abrir caminhos, criar pontes, celebrar vozes antes silenciadas. Que possamos enxergar a força que pulsa na poesia que vem do chão rachado, na música que nasce do lamento, na alegria que brota mesmo onde parecia impossível.

Nos quilombos sertanejos, a palavra é tudo: é arma contra a injustiça, é abrigo contra a dor, é semente de futuro. Que a gente nunca esqueça disso.

Cordéis e Cantorias Quilombolas: Vozes que atravessam o tempo

A tradição oral é o alicerce da cultura quilombola. Muito antes de o papel registrar as dores e alegrias do povo negro sertanejo, a voz já era instrumento de narrativa. Nos sertões, surgiram cantadores que transformaram sua história em versos rimados, narrando fugas, perseguições, colheitas, festejos e afetos — tudo costurado no tear da memória coletiva.

Os cordéis quilombolas, impressos muitas vezes em folhas simples e vendidos em feiras, são repletos de temas que a grande mídia e os livros escolares costumam ignorar: a história do negro que virou mestre da terra, a mulher parteira que venceu a opressão, o jovem quilombola que virou advogado contra o racismo.

Nas rodas de cantoria, mestres da viola se enfrentam em duelos poéticos, não por disputa, mas para fortalecer sua herança. Eles improvisam versos sobre racismo, desigualdade, amor, ancestralidade e fé. O canto é resistência, mas também cura.

“Na ladeira do engenho / um negro plantou raiz
E hoje canta em voz cheia / o que seu avô não quis.
Não quis ser mais cativo / quis ser dono do que diz.
Se a liberdade é palavra, / minha língua é o meu país.”

Biografias de Artistas Locais:

Mestre Josafá do Quilombo Varzinha

Mestre Josafá nasceu no quilombo de Varzinha dos Negros, no semiárido da Bahia. Filho de rezadeira com trabalhador rural, começou a cantar em rodas de samba de roda ainda criança. Aprendeu com o avô os primeiros versos de repente e aos 16 já improvisava em feiras e festejos.

Sem acesso à escola formal por boa parte da infância, aprendeu a ler com cordéis, e a escrever criando os seus. Hoje, aos 59 anos, é referência na literatura de cordel quilombola. Publicou mais de 40 folhetos e é convidado para recitais e rodas de poesia em universidades e escolas.

Em sua biografia rimada, publicada em 2019, conta:

“Sou filho de um chão sofrido / e neto de escravidão.
Mas o verso me fez livre / com viola e coração.
Quem diz que negro é calado / nunca escutou meu sertão.”

Josafá também atua como educador popular, levando oficinas de poesia e história oral para jovens quilombolas. Ele diz que seu maior prêmio não são os aplausos, mas “ver uma criança negra escrevendo sua própria história em forma de cordel”.

Cidinha da Silva (MG)

  • Nascimento: Belo Horizonte, MG – criada em comunidades negras tradicionais.
  • Quem é: Escritora, cronista e poeta, tem sua produção muito vinculada às questões raciais, de gênero e à memória negra.
  • Obras: Racismo no Brasil e Afetos Correlatos, Oh, margem! Reinventa os rios!
  • Atuação: Atua como curadora literária e em coletivos quilombolas urbanos. Sua escrita é marcada por oralidade e forte crítica social.

Mestra Griô Ilza Nogueira (BA)

  • Nascimento: Comunidade Quilombola de Tijuaçu, Senhor do Bonfim – BA.
  • Quem é: Parteira, contadora de histórias e poeta popular.
  • Reconhecimento: Recebeu o título de Mestra Griô da Cultura Viva pelo Ministério da Cultura.
  • Obra: Suas poesias são transmitidas oralmente e registradas por pesquisadores; fala da força das mulheres, da terra e da ancestralidade.

Zé do Coco (PI)

  • Nascimento: Quilombo Lagoas, Piauí.
  • Quem é: Cantador, compositor e cordelista popular.
  • Destaque: Conhecido por suas composições sobre a seca, o racismo e os encantados.
  • Atuação: Participa de festas tradicionais e rodas de toré; atua também em oficinas com crianças e jovens quilombolas.

Júlia Rocha (MA)

  • Nascimento: Quilombo Santa Rosa dos Pretos – MA.
  • Quem é: Jovem poeta, estudante de Letras e ativista quilombola.
  • Obra: Escreve poesia slam e cordel sobre o racismo ambiental, o genocídio da juventude negra e a sabedoria das mulheres do quilombo.
  • Reconhecimento: Finalista do Slam Brasil Quilombola em 2022.

Wilson Alves Bezerra (SP / RN)

  • Nascimento: Paulista, criado entre São Paulo e o sertão potiguar.
  • Quem é: Professor universitário e poeta ligado à temática afro-brasileira e à literatura de resistência.
  • Obra: O Pau do Brasil (livro de poesia política), onde há registros sobre quilombos urbanos e memórias do sertão negro.

Luzia Ferreira (AL)

  • Nascimento: Comunidade Quilombola Muquém – União dos Palmares (AL).
  • Quem é: Educadora e poeta, produz cordéis em defesa das comunidades tradicionais.
  • Obra: Autora de Cantigas de Palmares, integra coletivos femininos afroindígenas.
  • Atuação: Trabalha na formação de professoras quilombolas e usa a poesia como prática pedagógica.

Sebastião Marinho (PE)

  • Nascimento: Quilombo Conceição das Crioulas – PE.
  • Quem é: Poeta oral e cantador de viola.
  • Destaque: É conhecido por versos improvisados em festas de tradição africana, com base na história do quilombo e da sua avó griô.
  • Reconhecimento: Teve sua obra registrada por pesquisadores da UFPE.

Rosilene Santana (BA)

  • Nascimento: Salvador, com raízes na Comunidade de Rio dos Macacos – BA.
  • Quem é: Poeta, performer e pesquisadora de literatura afrodescendente.
  • Obra: Criadora do projeto Negra Palavra Quilombola, que leva poesia falada para as periferias e comunidades tradicionais.
  • Atuação: Faz performances poéticas em espaços de memória e centros culturais.

Mestre Cícero Teixeira (CE)

  • Nascimento: Quilombo Sítio Veiga – Ceará.
  • Quem é: Cordelista, agricultor e líder comunitário.
  • Obra: Autor de mais de 60 folhetos de cordel sobre história, fé e luta por terra.
  • Destaque: Suas poesias são vendidas nas feiras e registradas em programas de rádio comunitária.

Ana Késia dos Santos (PB)

  • Nascimento: Comunidade Quilombola Serra do Talhado – Santa Luzia, PB.
  • Quem é: Jovem poeta e estudante de Serviço Social.
  • Obra: Escreve poesias sobre o cotidiano das mulheres negras rurais e o impacto do racismo ambiental.
  • Destaque: Premiada em concursos de literatura negra e representou sua comunidade na Marcha das Mulheres Negras.

Versos de Resistência: Quando a poesia denuncia e empodera

A poesia quilombola do sertão não é neutra. Ela é política, viva e crítica. É arma contra a invisibilidade, escudo contra o preconceito e alicerce da autoestima coletiva. Os poetas versam sobre suas lutas diárias: falta d’água, racismo, descaso com a saúde e educação, mas também celebram conquistas, afetos e rituais.

A seguir, alguns versos colhidos de artistas quilombolas em eventos realizados no interior do Piauí e Pernambuco:

“Nascido no pé da serra / com palma no meu quintal
Nunca tive água encanada / mas sempre fui original.
Negro forte igual a jurema / não se dobra ao temporal.”

“Na beira do rio seco / plantei meu nome e coragem
Enquanto o branco escrevia / eu cantava na estiagem.
O quilombo me ensinou / a rimar com liberdade.”

Além de resistência, os versos funcionam como ferramentas de alfabetização crítica e fortalecimento cultural dentro das escolas quilombolas. Muitos professores usam cordéis locais como material pedagógico — porque é ali que os alunos se veem representados.

Cultura como Arma: A poesia que finca raiz no chão do sertão

Nos quilombos sertanejos, a cultura não é adereço, é armamento. O canto é um manifesto. A cantoria é um tratado oral de liberdade. Os cordelistas não escrevem apenas para entreter — escrevem para lembrar, educar, curar e, principalmente, resistir.

A poesia também é ato político: transforma o invisível em presença, o marginalizado em protagonista. Quando um jovem quilombola escreve sobre sua terra, ele reconstrói a história por outro viés — o da ancestralidade viva e orgulhosa.

“Eu sou do quilombo forte / que a história não apagou
E se quiser me calar / grito mais alto que o touro.
Se tentarem arrancar / minhas raízes do chão
Eu escrevo com sangue / a próxima revolução.”

Ao dar voz aos poetas e cantadores da resistência sertaneja, seu blog não apenas informa: ele amplifica, honra e repara. Ele mostra que o sertão negro não apenas sobrevive — ele canta, encanta e transforma.

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